Uma frase bem conhecida no meu quotidiano. Não me refiro apenas ao meu consultório, mas à vida em geral. A dificuldade em identificar acontecimentos ou factores que contribuam para o mal-estar da pessoa é real e tem consequências muito importantes. A pessoa sente-se depressiva, ansiosa, sente que algo está errado. Ao explorar a sua história de vida, é recorrente a sensação de ter tido uma infância feliz, na qual sente que foi relativamente bem amada, sem ter sentido falta de nada. Na sua vida actual, não raramente, a pessoa sente-se bem-sucedida, com recursos financeiros e sucesso profissional. No fundo, sente que está, e sempre esteve, tudo bem na sua vida. Inclusive, por vezes, são sentimentos que geram vergonha e auto-crítica, sendo comum ouvir expressões como “não sei dar valor ao que tenho” ou “tantas pessoas com vidas miseráveis e eu a queixar-me”. Se quisermos, até podemos encontrar formas de o abordar na cultura popular: “dá Deus nozes a quem não tem dentes”, “pobre e mal-agradecido”, “nunca está satisfeito com nada”, numa lista que não finda.
Para podermos compreender o que está em causa, em primeiro lugar, será importante pensar que o mal-estar, seja de que ordem for, terá de ter uma causa. De seguida, é importante referir que estamos habituados a pensar que aquilo que afecta a nossa saúde mental e que tem um impacto sério na pessoa são situações de grande intensidade. De uma forma generalizada, estas situações são apelidadas de trauma: grandes eventos angustiantes, que geraram quantidades avassaladoras de stress, que excedeu a capacidade da pessoa de lidar ou integrar as emoções envolvidas. Estas situações são perfeitamente identificáveis, tal como acidentes que impliquem ameaça física, abuso sexual, abandono, perda de entes queridos, relacionamentos abusivos, enfim, uma lista infeliz, que poderia ser muito maior. Embora seja comum trabalhar com pessoas vítimas deste tipo de trauma, o tipo de problemática a que me refiro diz respeito ao que se designa como micro-trauma. Falo de ocorrências subtis, difíceis de notar, que podem criar pequenas feridas emocionais e que se vão acumulando de forma invisível. Uma particularidade importante destes micro-traumas é que não são notados pelo próprio, fazendo com que permaneçam na estrutura psíquica da pessoa até que sejam vistos, compreendidos e reparados. Este tipo de trauma pode ocorrer em qualquer altura da nossa vida e em qualquer contexto social, seja ele amoroso, profissional, ou outro qualquer. No entanto, será mais importante quando ocorre numa altura de formação do carácter, ou seja, na nossa infância. Quando somos crianças, dependemos quase totalmente de relações íntimas com adultos significativos, pois estamos em plena formação psíquica. Procuramos regular a construção do nosso Eu através do que nos dizem, da forma como nos aceitam e validam, funcionando essas relações como um espelho. No fundo, desenvolvemo-nos através daquilo que os outros nos ajudam a conhecer e entender acerca de nós próprios. Se essas pessoas significativas se mostram compreensivas connosco, mostram interesse pela nossa individualidade e, consequentemente, amor, temos condições para nos sentirmos seguros, validados e capazes de construir um Eu forte, seguro e coeso. Se, pelo contrário, essas relações nos transmitem negligência, rejeição, frieza ou ódio, provavelmente, iremos interiorizar uma imagem distorcida e insegura de nós mesmos. Se a vida se desenrolar da forma mais “esperada”, estes adultos serão os nossos pais, que são, para o bem e para o mal, as pessoas mais importantes na vida de qualquer criança. No entanto, isto também ocorre com outros adultos significativos, como familiares, amigos ou professores. É junto destes que a criança procura manifestar o seu mal-estar, seja ele de que ordem for. Esse mal-estar não deverá ser um problema. A haver um problema, será sempre o da falta de sintonia entre a criança e adulto, quando não se estabelece um ambiente facilitador, que permita a maturação individual da criança. As formas de limitar o desenvolvimento de uma criança são muitas e variadas, mas há um aspecto transversal a todas elas: a tentativa de forçar uma determinada forma de pensar e agir. E as razões para que isso aconteça também são variadas, mas destaco as mais comuns na minha prática clínica. A primeira, será quando perante situações difíceis, por exemplo, a perda de um ente querido, problemas de ordem social ou guerras, o adulto não possui recursos para lidar com a mesma. Nessas situações, é comum que procurem moldar a experiência da criança mediante o que é suportável ou compreensível para si próprio. Embora sejam os adultos os responsáveis, não poderão, nestes caos, ser culpados, pois não têm eles próprios capacidade para lidar com o problema. Evitar as dificuldades de uma criança, negando-as e rejeitando-as, não será assim mais do que um esforço de auto-protecção psíquica do próprio adulto cuidador que, muito provavelmente, também não terá sido ajudado a lidar com determinadas emoções enquanto criança, tendo conhecido o mesmo tipo de negação ou rejeição. No entanto, a criança vai sentir isso como uma rejeição, sentindo-se, ela própria, inadequada, ou até “má pessoa”. A segunda, refere-se a situações muito frequentes, nas quais os pais vêm a criança como uma extensão de si próprios, não aceitando nada mais do que aquilo que projectaram para a criança, ou seja, para si próprios através da criança. Nestas situações, é muito comum ir ao psicólogo pedir para resolver o problema da criança ou jovem, sendo que a minha prática clínica não é excepção. Nestas situações, cabe ao psicólogo ajudar os pais ou cuidadores a entender que o problema se insere na relação que estabelecem com a criança e que não devem, nem podem, colocar-se fora do problema. Também é frequente que, logo que eu envolva os adultos no problema, não aceitando pedidos para “arranjar a cabeça” das crianças ou jovens como se de uma ilha se tratasse, resulte no fim imediato do nosso trabalho. Bem sei que não é possível que um cuidador proteja a criança ou jovem de todas as dificuldades ou situações que sejam potencialmente traumáticas. Em boa verdade, tal cenário não seria desejável, pois não permitiria que a criança pudesse usar a sua experiência como aprendizagem. O que é realmente importante para a criança, ou jovem, é que o cuidador esteja ao seu lado e a ajude a lidar com os problemas e situações traumáticas, de forma a que estas sejam integradas na sua mente, acumulando assim capacidade de agir e reagir perante o mundo que a rodeia. Quando isto não acontece, vai-se criando uma capa na sua estrutura psíquica e, após várias repetições deste cenário, aquilo que antes foi sentido como doloroso, passa a ser o normal. Altera-se assim a capacidade da criança, futuro adolescente e adulto, perceber o que é melhor para si e aquilo que deve ou não esperar de uma relação. Cenário este que se faz acompanhar por medos de várias índoles, assim como sentimentos contraditórios sobre si próprio e sobre o mundo que o rodeia. Por outro lado, a criança, ou jovem, vai aprendendo que não deveria ter determinados sentimentos e muito menos expressá-los, o que pode gerar uma excessiva e profunda vergonha de si própria. Uma solução frequente para evitar a rejeição é a anulação de toda e qualquer espontaneidade, através de uma forte limitação dos seus pensamentos, afectos e desejos. Desta forma, vão-se erodindo a auto-estima e o bem-estar da pessoa, diluindo o sentimento de ser uma pessoa boa, de ser eficaz ou de se sentir coesa, criando graves barreiras ao seu desenvolvimento. Na vida adulta, por exemplo, os pequenos insultos ou pequenos fracassos do quotidiano são, frequentemente, ouvidos e interpretados como a prova da sua inadequação, da sua incapacidade ou da sua maldade. Aquilo que se designa de psicopatologia do adulto no mundo da saúde mental, não é uma variante da psicopatologia infantil, mas sim o desenvolvimento e continuidade da mesma. Sendo do conhecimento da comunidade científica que é o sucesso do desenvolvimento da nossa vida emocional que cria as condições para a nossa capacidade intelectual, para a nossa capacidade de aprendizagem, já podemos começar a entender de que forma se podem enquadrar as dificuldades escolares tão na ordem do dia. Uma palavra para uma fase do desenvolvimento muito crítica, a adolescência. Esta é uma etapa na qual encetamos a busca pela nossa independência, ainda que relativa, como é da condição humana. Neste percurso, é de extrema importância comprovar que somos aceites e vistos como alguém com valor. Tudo o que não corresponder a essa independência, vai ser sentido como vergonha, que é o sentimento mais presente na adolescência, vergonha essa de não sermos capazes de nos afirmarmos socialmente, enquanto indivíduos. É extremamente importante ouvir um adolescente, tendo em conta o seu contexto, o seu momento de desenvolvimento e o seu sistema de crenças. Tudo isto, sem nunca se confundir com o papel do colega, pois o que o adolescente procura é um adulto que oiça de forma não crítica e procure compreender para, com a sua experiência e conhecimento, poder ajudar e orientar o seu pensamento, criando assim espaço para o seu desenvolvimento. Entrando na fase adulta, vamos, naturalmente, ter a pessoa que foi possível construir sobre as bases da sua infância. Quando alguém se sente rejeitado, traído ou mal-tratado pelas pessoas mais importantes para si na infância, naturalmente, a sua capacidade de criar ligações profundas na idade adulta estará afectada, tornando-se muito difícil confiar inteiramente em outra pessoa. No entanto, este tipo de agressões que vamos recebendo ao longo do nosso desenvolvimento é tão frequente que nos vamos habituando a este tipo de destrutividade subtil nas nossas relações, considerando-as normais. Mais complicado ainda, não pensamos nelas, pois não apresentam, aos nossos olhos, qualquer razão para serem postas em causa. O micro-trauma enfraquece ou distorce a nossa capacidade de expressão, impede a coesão do nosso Eu e intromete-se, naturalmente, nas relações futuras. Nada há mais a fazer, do que desenvolver uma nova relação suficientemente segura e aceitante, que permita criação de novas possibilidades de expressão dessa vida emocional que foi apartada do nosso pensamento através de funcionamentos como os que descrevi anteriormente. À medida que a mesma vai sendo conhecida, será possível neutralizar as suas influências no nosso pensamento e comportamento, ao invés de nos intoxicarem subrepticiamente. Desta forma, essas emoções podem ser integradas na riqueza e complexidade da nossa experiência emocional actual, permitindo-nos assim prosseguir no nosso desenvolvimento e, desejavelmente, alcançar o bem-estar que todos procuramos. Micro-trauma é um conceito desenvolvido pela psicoterapeuta norte-americana Margaret Crastnopol. Se quiser saber mais sobre o tema, sugiro a leitura do seu livro “Micro-Trauma: a Psychoanalytic Understanding of Cumulative Psychic Injury”, editado pela Routledge.
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