Já todos nos deparámos com a partilha de posts nas redes sociais, nos quais o autor da partilha faz comentários como “é o meu pensamento, sem tirar nem pôr”, “é isto mesmo que eu penso” ou “poderia ter sido eu a escrever”. Grande responsabilidade esta, de ser porta-voz de outrem, muito provavelmente, sem que o autor tenha conhecimento de tal.
Encontrar representantes das nossas ideias e ideais é algo que ocorre em toda a parte e o nosso Portugal não será uma excepção. De norte a sul, de norte a Faro, da Covid-19 aos representantes destes assuntos contemporâneos difíceis. E quanto mais difíceis e mediáticos forem os temas, maior a necessidade de representantes do nosso pensamento. Dar a nossa opinião é, a vários níveis, difícil. De uma forma geral, é preciso explorar os assuntos, organizar a informação na nossa mente, qualificá-la e, depois, definir a nossa posição perante a mesma. Se este percurso implica que exista em nós uma disponibilidade emocional, que sustente a nossa capacidade cognitiva, também será importante referir que, ao emitirmos a nossa opinião, estaremos ao alcance de um qualquer parecer de outrem. Desaguamos então neste caminho bifurcado: ou reunimos condições para emitir opinião ou elegemos representantes. Como tenho referido em outros textos, a vida só acontece através de uma matriz relacional. Não conhecemos outra, desde a concepção até ao fim da canção. E não vale dizer que se pode passar muito tempo sozinho, pois, se tão simples fosse, nem da palavra solidão precisaríamos. São as figuras de referência da nossa vida que nos mostram formas de ser, modelos esses que prontamente imitamos, e que nos dizem, de uma forma mais directa ou mais indirecta, como podemos ser. Podem ajudar-nos a descobrir o nosso “Eu” de uma forma positiva e construtiva, ouvindo-nos, apoiando-nos, valorizando o que sentimos, pensamos e dizemos. Quando não é o mais acertado, entendem-no como um caminho que está a ser percorrido e ajudam-nos a abrir os horizontes para desvendar o resto do caminho a percorrer. Mas também podem limitar o nosso desenvolvimento, igualmente de forma directa ou indirecta, com intenção ou sem intenção. A utilização de uma relação com alguém mais frágil do ponto de vista psicológico em prol de interesses do próprio, das suas teimosias ou dificuldades, fica dependente do auto-conhecimento e integridade dessa pessoa de referência. E sabemos que, quando acontece, amolga a alma. Mais comum do que o desejável, é aquilo que podemos designar de “culto” da exigência, “é para o teu bem”, se for difícil agora, depois será mais fácil”. Algo que é passado intergeracionalmente, sem crítica ou reflexão adequada, mas que passa, “normalmente”. O caminho mais provável dessa exigência é a sua interiorização, por parte do alvo da mesma, de forma tão extremada quanto, por exemplo “eu tenho que ser perfeito”, ficando bem demonstradas as carências dos cuidados recebidos, principalmente nos momentos mais precoces, onde o nosso Eu, em formação, era muito mais permeável. Avistamos a interferência no desenvolvimento de um sentimento de “Eu”, que se quer centrado e integrado na própria subjectividade, na individualidade. Mesmo que não pareça óbvio, a interiorização de uma “autorização para Ser” ocorre quotidianamente, ao longo das nossas vidas, e tem na consistência, auto-conhecimento e bom senso das pessoas significativas, a chave do seu sucesso. Quanto mais inconsciente isto estiver na nossa mente, mais longe do nosso pensamento estará a possibilidade de reconhecimento da limitação que provoca na vida de cada um de nós. Continuando, para emitir a nossa opinião, será necessário abandonar algumas regras que possamos ter interiorizado nessas relações significativas, com as autoridades circundantes da nossa vida, por forma a podermos construir e reconstruir o nosso pensamento, uma e outra vez, até encontramos uma fórmula que seja nossa, com a limitação mínima possível de uma exigência que começou fora de nós e se transformou em auto-exigência. Mas nem sempre isso acontece, pelo que é bastante comum a eleição dos tais representantes da nossa opinião. Se adicionarmos a extrema auto-exigência, a impossibilidade de falhar, só um herói poderá servir os nossos intentos. Estes heróis da esfera pública, ajudam-nos a ter opinião, a ter a voz activa e ouvida que todos merecemos ter, dando-nos uma sensação de liberdade e, ao mesmo tempo, de nos “inscrevermos", como diria José Gil, quando isso não está ao nosso alcance pessoal. No momento actual, a pandemia covid-19 é um desse temas fracturantes, em que, compreensivelmente, há uma maior procura por essas vozes públicas, que ajudem a população em geral a compreender a seriedade do momento, e que as impeça de fazer, por exemplo, festas privadas com vários participantes. Se esses heróis não podem falhar num mundo normal, por forma a corresponder à nossa própria exigência, o que dizer de uma falha num mundo em pandemia. Um pandemónio! Se, por variadas razões, não tivemos o acompanhamento de figuras de referência congruentes e constantes, que permitissem o desenvolvimento de um “Eu” forte, que nos permita opinar de forma segura; se a auto-exigência é tal que só um herói nos pode valer; se o herói eleito, aquele que nos poderia salvar da exigência que nos tolda o pensamento, falha, então só o ódio por esse herói nos poderá apaziguar. Uma cólera que nos cega, ao ponto de deitar a água do banho fora com o bebé incluído. E quando assim é, apenas podemos lamentar a perda de uma oportunidade fantástica de quebrar a nossa auto-exigência, a tal que nos suga a subjectividade e nos faz acreditar que nada temos a dizer. Uma oportunidade de nos aligeirarmos, de nos permitirmos ser mais humanos e, com sorte, quebrar a transmissão desta armadilha existencial àqueles para quem viermos a ser significativos. Uma aberta para podermos também dizer e falhar, dizer e errar. E também menos ódio que, no fim do dia, é por nós próprios.
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