“É uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser encontrado.” A tradução é livre e a frase não é minha. É de um importante psicanalista Inglês, de seu nome Donald W. Winnicott. Embora, à primeira vista, possa parecer paradoxal, esta é uma ideia central no desenvolvimento emocional e psicológico de cada um de nós. Por um lado, o espaço individual privado é essencial para a constituição do nosso Eu, para desenvolvermos a nossa identidade, para nos tornarmos pessoas. Por outro lado, esse espaço privado só se desenvolve quando sentimos que outras pessoas se interessam por nós e nos fazem sentir que fazemos parte, que somos importantes. Seja porque querem ouvir o que temos a dizer, qual a nossa experiência pessoal, seja porque respeitam o nosso silêncio. Esta condição é absolutamente fulcral, principalmente, na infância e encontra uma encenação perfeita no jogo das escondidas. Quem nunca sentiu a excitação de estar num esconderijo tão bom, que todos os outros já tinham sido encontrados e nós lá continuávamos, deleitados no nosso super esconderijo. Mas a situação muda, ao colocarmos a hipótese de nunca nos encontrarem, o que tornaria esse jogo interminável, transformando rapidamente o deleite em desespero.
Esta semana, um dos assuntos do momento foi um restaurante que continuou a funcionar, ignorando olimpicamente as regras impostas pelo Governo em tempo de pandemia. A situação foi tal, que a PSP teve de intervir, autuando várias pessoas. Acompanhar as reacções através da comunicação social e das redes sociais foi interessante e desanimador. Interessante, enquanto objecto de estudo psicológico, mas também desanimador, pela forma literal que se encaram este tipo de situações, deixando à vista a falta que o pensamento psicanalítico faz. Torna-se cada vez mais imperativo procurarmos entendermo-nos, assim como entender os outros, de uma forma mais profunda, resistindo à tentação do “parece". De uma forma generalizada, os comentários indignados, e com razão, acerca das pessoas que estavam naquele restaurante centram-se numa suposta ignorância acerca da pandemia e da perigosidade do vírus, assim como no desprezo que estas pessoas terão pela vida alheia. Se pensarmos bem nisso, a esta altura, a informação acerca do novo coronavirus é tão abundante e consistente que, mesmo com muita contra-informação, é muito difícil que estas pessoas não tenham acesso à mesma. Mais ainda, à medida que a pandemia vai fazendo vítimas, torna-se cada vez mais difícil não ter contacto, mais ou menos próximo, com um caso grave ou que tenha mesmo terminado da pior forma. O isolamento social não o permitiria, pois é justamente contra isso que pensam estar a lutar, e também não há notícia de défice cognitivo. Por outro lado, a ideia de desprezo pelo outro, implicaria que estas pessoas estariam bem conscientes de si e das possíveis implicações que este comportamento poderá ter para as pessoas à sua volta. Seria qualquer coisa como “eu sei que posso adoecer gravemente ou causar esse adoecer às pessoas do meu meio, mas é mais importante ir jantar fora”. Seria deveras surpreendente. Resta-nos pensar nesta situação como um défice pessoal, uma carência tal, que não permite que a pessoa pense mais do que em si própria e na forma de colmatar essa falha. O pior de tudo é que o que aqui apresento não está a um nível consciente, pelo que as justificações que a pessoa encontra para si própria para ter um comportamento deste tipo são bem diferentes. Ao ter a oportunidade de ouvir a justificação de algumas pessoas que estiveram no restaurante, isso fica bem patente, pois o discurso passa por terem passado uma “noite fantástica” e por “sentir a liberdade”. Este é apenas um exemplo de uma panóplia interminável de justificações racionais, que se podem construir ao nível consciente, e que apenas servem para tentarmos dar alguma coerência àquilo que sentimos como incoerência em nós. Também há teorias sobre uns supostos chips que vêm nas vacinas e uma suposta ligação com o 5G. Como se pode ver, nem o céu é o limite, pois os satélites e o espaço já estão envolvidos. Retrocedendo uns parágrafos atrás, se não formos devidamente descobertos, naquilo que dizemos e naquilo que não dizemos, podemos passar uma vida inteira a tentarmos escondermo-nos e a provocar que nos encontrem, mesmo que para isso tenhamos que desrespeitar a lei, pôr-nos a nós próprios e aos nossos em perigo, e publicar tudo isso em directo nas redes sociais. As pessoas que estavam no restaurante foram encontradas pela polícia que as multou. No entanto, não podem pagar a multa, pois o jogo acabaria.
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